Autonomia: você está preparado para delegar?

Para iniciar este artigo, gostaria de lhe apresentar o conceito de EVP. Você já o aplica em sua organização? Nunca ouviu falar ou precisa entender melhor suas diretrizes? O Employee Value Proposition (ou Proposta de Valor ao Empregado), de modo bem sintético, se refere a tudo aquilo que oferecemos em uma empresa para engajar colaboradores. É, em suma, a proposta de valor de uma companhia para a construção das relações com seus times.

Mas falar de EVP é apenas o ponto de partida para que possamos refletir, juntos, sobre aquilo que aproxima empresas e equipes. Você já parou para pensar, realmente, naquilo que impulsiona o desenvolvimento do seu colaborador? Qual o seu propósito de carreira e de que modo as corporações em que atuamos – e nós mesmos, enquanto lideranças – contribuem com esse processo de desenvolvimento?

Mais do que altruísmo ou boa vontade, meditar sobre essas questões pode ser a chave para fidelizarmos talentos em uma era na qual a disputa por trabalho especializado se acirra dentro do movimento de transformação digital do mercado. Ademais, não tenho dúvidas de que é nesse caminho de entendimento e compreensão que poderemos superar o desafio do turnover – uma das principais preocupações do RH contemporâneo, de acordo com diferentes pesquisas e análises.

Sobre o primeiro ponto (e considerando apenas o universo da tecnologia), uma pesquisa da Brasscom divulgada no ano passado, apontou que o Brasil precisa, em média, de 70 mil trabalhadores especializados por ano, mas forma pouco mais de 46 mil. E o nosso país não está sozinho nesse cenário: em países como a Alemanha, estima-se que a carência geral de 250 mil profissionais qualificados.

Já sobre o turnover, não é segredo para quase ninguém que os movimentos de demissão voluntária cresceram expressivamente no Brasil e no mundo ao longo dos últimos anos – recebendo, inclusive, a denominação de Great Resignation. Só no ano passado, o Brasil registrou um aumento de 56% no turnover e de 48% nas demissões voluntárias (15% a mais que 2021), segundo números da consultoria Robert Half, com números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED).

O que buscam esses profissionais e onde, eventualmente, as lideranças estão falhando? Mais do que “apontar o dedo”, o importante é buscar uma transformação a partir do momento atual. Comecemos, nesse sentido, buscando mapear as aspirações do mercado de trabalho. E isso pode ser feito combinando tanto nossas próprias vivências e evolução de carreira (enquanto líderes e liderados); quanto estudando indicadores e pesquisas sobre essa pauta tão crucial para a gestão de pessoas dentro desse ciclo disruptivo de transformações da economia e da sociedade.

Dito isso, analisando o perfil das aspirações de trabalhadores brasileiros, um excelente relatório da Microsoft divulgado no ano passado chegou aos seguintes eixos centrais:

  • Saúde e bem-estar;
  • Flexibilidade;
  • Remuneração;
  • Tempo;
  • Propósito.

Especialistas da Microsoft indicaram ainda o desejo pela construção de conexões e abertura para o diálogo por parte dos gestores, no sentido de entenderem aquilo que realmente funciona para a cultura da empresa. Tais pontos abrem espaço para alguns insights.

O primeiro deles é que o tripé (tempo, propósito e flexibilidade) está diretamente ligado com um maior ganho de autonomia e pela busca por colocações que permitam às pessoas perseguirem outras paixões, anseios e objetivos. Em outras palavras: o “viver pelo trabalho” está, gradativamente, sendo substituído pelo “trabalho que me permita viver plenamente”. A autonomia, aliás, é ressaltada como o principal driver da motivação nas empresas, em artigo publicado pelos pesquisadores Holger Reisinger e Dane Fetterer na Harvard Business Review, em outubro de 2021.

O mesmo pode-se falar da saúde e bem-estar: quem, afinal de contas, deseja um trabalho que consome nossas energias, saúde física e mental? Observar essa necessidade é premente para respeitarmos e construirmos relações saudáveis em ecossistemas corporativos digitalizados e nos quais os modelos híbridos de gestão de pessoas avançam.

A nova era dos negócios híbridos e digitais

Avançam – mas não sem resistência de algumas lideranças que precisam, de modo urgente, mudar suas perspectivas sobre ambientes de trabalho. Do contrário, além de perderem a oportunidade de formar times multidisciplinares, globais e que hoje podem se interconectar sem ruídos e sem fronteiras graças ao avanço das tecnologias de comunicação, eles correm o risco de ver seus principais talentos migrando para outras companhias mais abertas e flexíveis.

E essa tese não é exclusivamente minha, uma vez que diferentes dados demonstram essa tendência. Um estudo do Google Workspaces e do IDC Brasil ressaltou, por exemplo, que 73% dos trabalhadores preferem o híbrido – e, mais do que isso, 65% daqueles que estão empregados trocariam seus empregos pela oportunidade de atuarem nesse modelo.

Por enquanto, o mercado brasileiro conta com 48% das companhias atuando nessa combinação – ao passo que 38% já almejavam retornar para o trabalho 100% presencial em 2022, de acordo com a Robert Half. Estamos falando de uma insistência que pode custar caro e me parece crucial nos perguntarmos: o que vale mais, equipes autônomas e engajadas ou a resistência diante de uma mudança que, ao que tudo indica, veio para ficar?

E aqui vale frisar um ponto: muitas companhias – da Tesla ao Goldman Sachs – assumem a escolha pelo trabalho presencial, inclusive preferindo o turnover e lidando com as consequências dessa escolha. Em outras palavras: é importante também entender o perfil do negócio e suas bases essenciais de cultura organizacional antes de investir em processos mais amplos de transformação.

Três pilares para um novo modelo de gestão de pessoas: independência, colaboração e confiança

A abertura para o novo, por mais desafiadora que seja (e, de fato, é), no longo prazo, tende a trazer frutos positivos. Precisamos ter a coragem de pensar em novos modelos de gestão de pessoas que consigam equilibrar:

  • As mudanças de um mercado digital que caminha para o híbrido;
  • Os objetivos e a cultura de nossos negócios;
  • Os objetivos e aspirações de nossas equipes.

Com base em minhas experiências e nessas análises do mercado, acredito, sobretudo, em três pilares fundamentais nesse processo:

  • Maiores níveis de independência e autonomia: incentivando a autogestão, os modelos de trabalho por projetos/entrega (e não necessariamente por horas), sempre em comum acordo com os regimentos trabalhistas do país;
  • Estruturas colaborativas de trabalho: podemos e devemos aproveitar os benefícios de um mercado globalizado, incentivando trocas e contribuições multiculturais a partir da formação de equipes que se complementam entre seus talentos;
  • Cumplicidade: mas isso só é possível a partir de um alto grau de confiança. Devemos, portanto, conhecer, acreditar e incentivar a liberdade e a independência de nossas equipes, em comum acordo com os objetivos da organização.

Ressalto, por fim, que nesse caminho de descobertas, não há respostas definitivas. E o principal, em se tratando de gestão de pessoas, é que todas as camadas da empresa dialoguem e que os líderes saibam ouvir seus talentos, de modo que eles possam estruturar os ambientes de trabalho do presente e do futuro em conjunto, dia após dia, e segundo uma mentalidade de transformação contínua.

Sim, a comunicação – que, segundo o filósofo alemão, diz respeito a disposição para a compreensão – é o fio que tece todas essas possibilidades. Saiba ouvir, liderar e ver nascer líderes autônomos como você.