Uma análise do movimento que vem revolucionando o mercado de trabalho e uma conversa com os Nômades Digitais Letícia, Fred e Beatriz.
Minha carreira é marcada pelo anseio da mudança e da transformação. Justamente por carregar esses valores, ao longo de minha trajetória – seja como executiva ou consultora – sempre incentivei que colaboradores e lideranças também buscassem as respostas para os seus anseios mais profundos e construíssem jornadas guiadas pelo propósito e pelo respeito aos próprios ideais que dão sentido para nossas vidas.
Por essa razão, enxergo com muito bons olhos o processo de disruptura do mercado que abre espaço para novas perspectivas profissionais e modelos de trabalho capazes de abrigar um equilíbrio entre carreiras bem-sucedidas e histórias vividas com maior plenitude.
Nesse sentido, muito já se debateu, por exemplo, sobre o avanço de estruturas híbridas e de home office nas organizações e que já vem se consolidando dentro do movimento de retomada das atividades econômicas no ambiente de negócios global. Mas uma tendência ainda mais arrojada e que vem quebrando paradigmas no Brasil e no mundo envolve o conceito de anywhere office (escritório em qualquer lugar, em tradução livre), a qual vem sendo impulsionada pelo pioneirismo dos chamados nômades digitais.
Mas, em termos conceituais, o que vem a ser o nomadismo digital? Em um artigo de 2021, o Jornal da USP classificou esse movimento como mais que um simples modelo de trabalho, mas um estilo de vida no qual pessoas, sem renunciar a suas carreiras, viajam pelo mundo absorvendo novas culturas, ampliando seu background e vivendo experiências transformadoras ancoradas pelas possibilidades abertas pela tecnologia, dentro de um mercado de trabalho globalizado e digitalizado.
Traçando o perfil dos nômades digitais e de talentos que trabalham em uma dinâmica 100% remota, a Veja destacou em reportagem recente – com base em dados do IPEA – que esses profissionais já são mais de 7,3 milhões no Brasil, dos quais a maioria possui ensino superior (76%); estão entre os 30-39 anos (36,9%), trabalham no setor privado (61,1%) e, também em sua maioria, são mulheres (57,8%).
Atentos a esse movimento do mercado – que cresceu 70% durante os anos mais críticos de pandemia e seguem avançando – 80% dos gestores brasileiros afirmaram que consideram positivas as iniciativas do anywhere office, segundo a FIPE – embora ainda exista um grande campo de avanço para esse modelo no Brasil, uma vez que a própria FIPE apontou que pouco mais de 15% das empresas brasileiras contam com programas 100% remotos que possibilitam o nomadismo digital.
Mas, para além dos dados e dos debates do mercado, quais as rotas que possibilitam a construção das novas jornadas nômades? Para entendermos os desafios e as bases dessa escolha que atrai tantos profissionais Brasil afora, nada melhor do que a visão de quem experimenta na pele a aventura do nomadismo no ambiente de mercado contemporâneo.
Pensando nisso, conversei com meus queridos amigos Letícia Serrão e Fred Magalhães, que após mais de 15 anos atuando no meio corporativo tradicional como gestores de recursos humanos e planejamento estratégico, em 2019, partiram para maior aventura de suas vidas e abraçaram o caminho do nomadismo digital, que já rendeu um livro (Três mochilas pelo mundo), visitas à centenas de cidades em 15 estados brasileiros e uma longa temporada na argentina, criação de conteúdo que atrai milhares de seguidores e experiências inesquecíveis! Letícia, formada pela UFRJ com especialização em Gestão de Pessoas pela FIA-USP e Fred, graduado também em administração e com MBA em Marketing ambos pela UFMG.
Particularmente, tenho muito orgulho de dizer que a Letícia, em sua jornada profissional, trabalhou comigo em uma equipe de Desenvolvimento. Liderou um dos nossos projetos pioneiros que foi a implantação da Universidade Corporativa que, sob o seu comando, atingiu números recordes de adesão aos cursos, inclusive dois dos presidentes de operações no Grupo fizeram questão de liderar a execução das trilhas de treinamento por acreditarem no projeto, acreditarem no autodesenvolvimento e por terem se tornado inspiração para os demais colaboradores. Aqui o meu registro e o meu muito obrigada à Letícia.
O caminho das pedras do nomadismo digital
Para começar, um ponto chave para muitos que perseguem o sonho de uma carreira que não se limite pelas fronteiras dos escritórios envolve o start dessa trajetória. Como dar início a uma vida nômade? Quais os principais obstáculos a serem superados? E, em suma, como conciliar o trabalho dentro da rotina mais dinâmica de descoberta de novos países?
Letícia e Fred explicaram que, antes de tudo, é preciso coragem para renunciar à estabilidade do mercado de trabalho tradicional, organização financeira e muito planejamento – afinal, por mais enriquecedor que seja o nomadismo digital, é preciso não o confundir com a ideia de “férias eternas”.
“A vida até então, girava em torno do trabalho, sobrando pouco tempo para vivermos outras esferas da vida. Entendemos que o trabalho é parte importante, mas a vida não deveria girar em torno apenas do trabalho. Desejávamos muito mais:
· Mais tempo para cuidar da nossa saúde física e mental;
· Empreender em outras áreas de trabalho com mais liberdade e autonomia;
· Viajar e conhecer outros lugares, pessoas e culturas.”
Observem caro leitor, que as buscas deles não são diferentes das nossas. Eu acrescentaria que, mesmo nas incertezas, com “frio na barriga” precisamos dar passos em direção àquilo que acreditamos que, de alguma forma, será melhor para nós, mesmo que não haja 100% de concretude em tudo que desejamos e planejamos. É preciso, acima de tudo ter coragem.
“Ao longo da nossa vida profissional sempre poupamos grande parte do nosso salário para um projeto que ainda não tínhamos clareza do que seria. Mas, sabíamos que em algum momento da vida faríamos uma grande mudança. Em 2011. quando tiramos um ano sabático, fizemos uma grande viagem de volta ao mundo. Foram 365 dias de uma viagem intensa e transformadora que nos mostrou que a vida pode oferecer mais do que 8, 9, 10 horas diárias trancados no escritório e nos deu confiança para tentar algo novo. Então, durante 8 anos – entre a volta do sabático e o início da nossa vida como nômades digitais, em 2019 – vivemos de alguma forma nos preparando para uma mudança de vida. Estudando sobre as possibilidades de trabalho remoto e de empreendedorismo. Sempre que possível viajando pelo mundo (já visitamos 48 países) e fazendo também uma boa gestão financeira para nos dar segurança para arriscar. Esse planejamento é fundamental quando se quer viver o nomadismo de verdade. Outro ponto indispensável é a organização do cotidiano na estrada com a vida profissional. É importante ter disciplina para conciliar esses mundos: conhecer os lugares e cuidar da logística das viagens, por exemplo, passa a fazer parte da rotina. Como vivemos em um motorhome, temos ainda preocupações adicionais. Estamos sempre em movimento e precisamos nos preocupar em manter a casa funcionando (a cada 3 dias colocar água, a cada semana fazer descarte de dejetos, sempre que mudamos de cidade procurar um lugar seguro para dormir, procurar um bom sinal de internet ou wi-fi) e assim vai… São questões que, hoje, fazem parte de nossa vida. Por fim, é importante não se deixar levar pela sensação de estar de férias fazendo uma boa gestão do tempo e do dinheiro.”
Em outras palavras: Letícia e Fred reforçam que todo sonho tem uma dose importante de realismo e pés no chão – ou melhor, na estrada! Além disso, é importante termos em mente que toda escolha implica tanto em sabermos abrir mão de outras possibilidades (o que você quer, conforto ou aventura? Estabilidade ou novas experiências?) quanto em entender que desafios continuarão existindo, mas, quando vivemos segundo nossos propósitos, temos motivação genuína para superá-los.
Sua principal renda vem dos projetos de planejamento estratégico viabilizados pelo networking construídos nos quase 20 anos no mercado. Fred e Letícia trabalham em projetos pontuais na área de planejamento estratégico. Publicaram um livro com a história e o processo de mudança de vida, têm um e-book com todo o roteiro, passo a passo, para quem deseja se tornar nômade digital, fazem palestras e criam conteúdo para o perfil no Instagram e para o canal no Youtube, onde compartilham suas experiências como viajantes e pais em tempo integral.
Três mochilas pelo mundo! Aqui cabe o parêntese da chegada da Beatriz. Bia, como carinhosamente é chamada.
“Beatriz, nasceu e começou a passar 10 horas na creche para que nós pudéssemos trabalhar. Ali entendemos que se não fizéssemos uma mudança radical e rápida na vida perderíamos a oportunidade de acompanhar de perto o crescimento dela. Foi quando tomamos a atitude para fazer a mudança de vida que nos organizamos por tantos anos.”
Inovação como base
Letícia e Fred destacaram ainda o papel da tecnologia dentro dos novos paradigmas do mercado de trabalho e o perfil de profissionais que, como eles, optaram pelo nomadismo digital.
“A tecnologia é a base! É através da tecnologia que aproximamos as distâncias e viabilizamos que pessoas trabalhem juntas a partir de qualquer lugar. Sem uma boa internet e sem recursos para reuniões, esse estilo de vida se torna inviável. Já tivemos, inclusive, que mudar de cidade algumas vezes e até alugar um apartamento (hoje vivemos em um motorhome) para garantir uma boa internet para reuniões importantes”, explicam Letícia e Fred, reforçando o ponto da resiliência para superarmos desafios que comentei acima.
Sobre o perfil dos nômades digitais, eles destacam que já conheceram viajantes “atuando de diversas formas. Mas, a grande maioria não tem um vínculo formal. São em geral empreendedores ou prestadores de serviços que fazem freelas e têm relações de trabalho por projetos (que é, aliás, o nosso caso). Existem ainda os empreendedores, que desenvolvem produtos, atuam com criação de conteúdo e vendem serviços. Mas percebemos algo em comum entre todos: o desejo de mais liberdade e uma vida com mais propósito.”
E aqui vale reforçar a pergunta: você está disposto a abdicar de uma (ao menos aparente) segurança financeira para imergir em uma vida mais dinâmica, de viés empreendedor e correr atrás de novas possibilidades profissionais? Ter em mente essa certeza é crucial diante de uma escolha tão disruptiva!
Os passos essenciais de uma jornada única
Finalmente, Letícia e Fred me explicaram que cada jornada dos nômades digitais é única e depende de fatores que envolvem desde a formação até a reserva financeira de cada um; mas que há 3 pontos essenciais que devem ser levados em conta caso você sonhe com esse caminho que desperta tanto fascínio:
● Construa e faça uso do seu networking;
● Viabilize uma vida proporcional a sua renda com organização financeira e, se possível, com uma reserva combinada com outras fontes de faturamento e estratégias como a geo arbitragem (se aproveitar do custo de vida mais baixo de outros países);
● Transforme seu sonho em um plano (com etapas, ações e datas) e esteja preparado para um período de adaptação e de superação de incertezas/inseguranças naturais;
São dicas, aliás, que considero válidas para qualquer grande mudança em nossas trajetórias profissionais e existenciais.
Vivemos um tempo de busca por respostas e por novos significados de carreira que tem impulsionado movimentos em todo o mundo – nos Estados Unidos, por exemplo, o chamado The Great Resignation tem levado colaboradores a buscarem novas oportunidades fora de empregos tradicionais e redesenhado o mercado de trabalho americano – e, seja qual for sua escolha, é preciso coragem para viver de acordo com seus objetivos e valores. Ou, como bem lembraram Letícia e Fred, “nosso conselho final para quem sonha em ser nômade digital é cair na estrada, se adaptar e construir sua história durante a caminhada”.